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A idéia de segurança existe desde os primórdios da organização jurídica, que tinha por finalidade garantir a convivência pacífica entre os homens, seres políticos por natureza176, e que, por isso mesmo precisaram estabelecer limites para a sua atuação no grupo social, a fim de lhes assegurar os direitos naturais – direitos à liberdade, à vida e à propriedade177. A segurança jurídica está diretamente ligada ao Estado de direito e a sua garantia constituiu, no início, o objetivo principal desse. Conforme observa Canotilho,
Viu-se que o Estado de direito nasceu, propriamente, com o Estado liberal, em que se consolidou a necessidade de uma ordem jurídica positiva, na qual as leis seriam imperativas para todos, inclusive para os governantes. A importância atribuída à segurança jurídica na proteção dos direitos de liberdade já se podia constatar no art. 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e no preâmbulo da Constituição francesa de 1793179.
A identificação da segurança jurídica como fundamento do próprio Estado de direito pode ser constatada na doutrina e na jurisprudência ao fixarem o seu conteúdo com base nas seguintes idéias:
A compreensão da segurança jurídica, todavia, evoluiu na mesma medida em que o Estado de direito, pois a partir do momento em que este adquire um sentido material, em oposição ao sentido formal-positivista, aquela passa a ser relativizada em nome da justiça social, no sentido de atender à vontade do povo e realizar o bem-comum. Esses dois valores – segurança e justiça – portanto, passam a conviver juntos181.
Verifica-se, ainda, que a estabilidade da ordem jurídica é tão importante como a própria existência desta. Não se poderia considerar seguro um ordenamento que fosse constantemente modificado. Aliás, Recanses Siches, numa idéia bem próxima do positivismo jurídico, assinala que “o direito não nasceu na vida humana por virtude do desejo de prestar culto ou homenagem à idéia de justiça, mas para satisfazer uma ineludível urgência de segurança e de certeza na vida social”182. A reiterada alteração das leis pode comprometer a confiança que nelas se deposita e, via de conseqüência, a sua eficácia183. Essa estabilidade adquire maior relevância ainda quando se trata da Lei Fundamental do Estado, norma central dos sistemas jurídicos, que embasará a criação das leis ordinárias, a execução e a aplicação do direito.
Diante disso é que Hesse menciona a sua preocupação com “a tendência para a freqüente revisão constitucional sob a alegação de suposta necessidade política”, alertando que “a freqüência das reformas constitucionais abala a confiança na sua inquebrantabilidade, debilitando a sua força normativa. A estabilidade constitui condição fundamental da eficácia da Constituição”. Assinala, assim, a importância da interpretação constitucional para concretizar o sentido da norma constitucional no contexto da realidade que se observa184.
A segurança jurídica, no entanto, não pode levar ao extremo de um ordenamento jurídico imutável, pois isso também comprometeria a sua eficácia. Daí a importância de se estabelecerem normas constitucionais que a protejam. Uma saída para impedir a anulação do princípio da segurança jurídica é, pois, a previsão das chamadas cláusulas pétreas, que consagram o núcleo essencial da Constituição de um Estado, o qual, a partir dessa disposição, não poderá ser atingido nem mesmo por reforma constitucional. Estes limites materiais à reforma da Constituição repercutem sobre todo o sistema e, embora sejam colocados de maneira absoluta, não serão impeditivo para o surgimento de uma nova Lei Fundamental, se assim o exigir a realidade social. Neste sentido, pondera Canotilho:
O verdadeiro problema levantado pelos limites materiais do poder de revisão é este: será defensável vincular gerações futuras a ideias de legitimação e a projectos políticos que, provavelmente, já não serão os mesmos que pautaram o legislador constituinte? Por outras palavras que se colheram nos Writings de Thomas Jefferson: “uma geração de homens tem o direito de vincular outra”? A resposta tem de tomar em consideração a evidência de que nenhuma constituição pode conter a vida ou parar o vento com as mãos. Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos, e, consequentemente, as alterações constitucionais, se ela já perdeu a sua força normativa. Mas há também que assegurar a possibilidade de as constituições cumprirem a sua tarefa e esta não é compatível com a completa disponibilidade da constituição pelos órgãos de revisão, designadamente quando o órgão de revisão é o órgão legislativo ordinário (grifos do autor)185.
Segundo José Afonso da Silva, a segurança jurídica é uma decorrência da segurança do direito. Esta se refere à positividade do direito, que encontra o seu fundamento de validade na Constituição. É sob este aspecto que a segurança se harmoniza com o valor justiça, “na medida em que a Constituição tem por missão assegurar a vigência e eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana, em que se centram todas as demais manifestações dos direitos fundamentais do homem”186. A segurança jurídica, por sua vez, assume dois sentidos, um amplo e outro estrito. Este consiste na garantia de estabilidade e certeza das relações jurídicas, permitindo que os indivíduos prevejam os efeitos de suas condutas os quais não poderão ser atingidos por futura mudança legislativa. A segurança jurídica em sentido amplo está ligada à garantia geral de direitos que se consagram constitucionalmente187.
Pode-se dizer que a segurança jurídica em sentido amplo se identifica com a própria segurança do direito, embora aquela não dependa necessariamente de regras escritas, pois a ordem jurídica pode ser segura mesmo em países como a Inglaterra, que adota uma Constituição baseada em documentos históricos e regras costumeiras. Verifica-se, ainda, que a segurança jurídica lato sensu está mais ligada ao aspecto material das normas de direito do que ao seu aspecto formal, no sentido de tornar efetivos os direitos fundamentais do homem. Assim, a segurança jurídica “consiste na proteção conferida pela sociedade a cada um de seus membros para conservação de sua pessoa, de seus direitos e de suas propriedades”188.
A segurança jurídica em sentido estrito, sim, é que está mais focada nesse aspecto formal, típico do Estado de Direito Liberal e característico dos sistemas jurídicos positivados, nos quais é possível identificar o momento exato da entrada em vigor de uma lei e da revogação daquela que a antecedia. Aqui a segurança jurídica relaciona-se, ainda, aos efeitos temporais das leis, os quais, como regra, não poderão retroagir para atingir fatos consumados sob a vigência da lei anterior. Observe-se, porém, que não se está negando o conteúdo material da segurança jurídica stricto sensu, pois esta não deixa de ser uma garantia individual.
São exemplos de normas que confirmam a segurança jurídica em sentido estrito os seguintes dispositivos da Constituição brasileira: art. 5º, III (princípio da legalidade lato sensu), XXXVI (proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada), XXXIX (princípio da legalidade penal) e XXXL (princípio da irretroatividade da lei penal, salvo se mais benéfica); art. 150, II (princípio da legalidade tributária) III, a (princípio da irretroatividade da lei tributária), b (princípio da anterioridade de exercício) e c (princípio da anterioridade mínima).
Sendo assim, a segurança jurídica em sentido estrito serve como instrumento próprio para garantia da estabilidade, pois, embora não impeça que as leis sejam modificadas, impõe como regra que permanecerão intactos os efeitos produzidos durante a vigência destas189. Aliás, sob o enfoque da previsibilidade, exerce esse papel por meio dos princípios da legalidade ampla ou estrita (penal e tributária). E, no que tange especificamente ao princípio tributário da anterioridade, mínima e de exercício, possibilita que os indivíduos se preparem para sofrer um decréscimo em seu patrimônio diante da criação ou majoração de tributo.
Podem ser mencionadas, ainda, outras duas espécies de segurança jurídica, quais sejam, a segurança por meio do direito e a segurança como direito social, verificando-se em ambas uma forte atuação estatal para a sua consecução.
A segurança por meio do direito subdivide-se em segurança do Estado e segurança pessoal190. A primeira consiste na defesa da soberania nacional (art. 91) e do território do Estado contra invasões estrangeiras (arts. 34, II, e 137, II) por meio do estado de defesa e do estado de sítio (arts. 136 a 141) ou, ainda, por meio das Forças Armadas (art. 142), na defesa da Pátria. A segunda se dá pelas técnicas da segurança pública (art. 144), em que se protege o indivíduo contra atos criminosos de particulares, e pelas garantias penais (art. 5º XXXVII a XLVII), em que se protege o indivíduo contra as arbitrariedades de agentes públicos.
No que tange à segurança como direito social, esta constitui a previsão de diversos meios para garantir o bem-estar e a justiça sociais, tendo por base o primado do trabalho (art. 193). Trata-se de uma espécie de direito social e não da proteção de todos os direitos sociais definidos no art. 6º da Constituição (o que estaria abrangido pela segurança jurídica em sentido amplo). Quer-se proteger aqui o direito ao mínimo existencial191, no sentido de proporcionar às pessoas condições de sustentarem a si e à sua família ou de financiar o sustento daqueles que não estão habilitados para o trabalho. É nesse contexto que se institui a seguridade social – “conjunto de ações e iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (art.194).
A Constituição Federal do Brasil refere-se expressamente à proteção da segurança no preâmbulo e no caput dos arts. 5º e 6º. No caso do preâmbulo, todas as espécies de segurança estão ali abrangidas, pois estabelece que um dos objetivos do Estado Democrático brasileiro é “assegurar a segurança” assim como outros valores fundamentais de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos192. Ou seja, quando a Constituição assegura direitos, está-se diante da segurança jurídica em sentido amplo; e quando a Constituição se refere à própria segurança como valor, está-se diante das subespécies da segurança jurídica em sentido estrito. A expressão segurança no caput do art. 5º estaria relacionada à segurança jurídica em sentido estrito e à segurança jurídica como garantia penal. E, no caput do art. 6º, estaria relacionada à segurança como direito social, mais precisamente, à seguridade social.
Diante dessas espécies de segurança jurídica, pode-se concluir que a previsão dos arts. 27 e 11 das Leis nº 9.868/99 e 9.882/99, respectivamente, refere-se à segurança jurídica em sentido estrito, como garantia da estabilidade das relações jurídicas, porque se se considerasse a expressão no seu sentido amplo, como proteção constitucional de direitos fundamentais, não se poderia admitir a manipulação de efeitos diante da própria supremacia da Constituição – fundamento da declaração de nulidade da lei inconstitucional. É que, nesse caso, a segurança dos indivíduos estaria na Constituição e não na presunção de validade das leis. Assim, “se a lei for contrária à Constituição, sua manutenção contrariará a estabilidade do ordenamento regido por tal Constituição, possibilitando a incerteza quanto à estabilidade das normas constitucionais de determinado Estado”193.
Não se pode perder de vista, porém, a idéia de que a segurança jurídica em sentido amplo encontra respaldo na justiça social e que esta nem sempre estará garantida com a simples declaração de inconstitucionalidade com efeitos retroativos. A segurança jurídica não é a própria justiça, é um meio para alcançá-la. Se se admitisse o contrário, estar-se-ia regredindo para a antiga insuficiência do positivismo, onde o direito é a norma escrita, independente da sua justiça. Destarte, se por um lado o controle de constitucionalidade das leis serve para garantir a segurança jurídica, por outro, esta, como princípio constitucional, poderá em alguns casos justificar o reconhecimento das situações jurídicas que se criaram sob a vigência da lei inconstitucional e, até mesmo, a sua posterior aplicação. Apenas o caso concreto, em que se possam avaliar as conseqüências da declaração de inconstitucionalidade, é que dirá qual a decisão se configura mais justa.
Uma decisão que prime pela justiça não pode deixar de ter em conta a boa-fé dos indivíduos e a presunção de constitucionalidade das leis, ambas intimamente relacionadas com a segurança jurídica. Tanto que, seguidamente, tais razões vêm sendo consideradas nos debates acerca da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Na ADI n. 3791, o Relator, Ministro Carlos Britto, atribuiu efeito ex nunc à decisão que declarou inconstitucional, por vício de iniciativa, a Lei distrital nº 35/95, que autorizou o Governo do DF a conceder aos policiais militares e aos bombeiros militares a “gratificação por risco de vida”. O Ministro levou em consideração a natureza alimentar da gratificação instituída e a presunção de boa-fé daqueles que a perceberam194.
A relevância da segurança jurídica, determinante na limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, vem sendo aceita por alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal como justificativa para o conhecimento de embargos de declaração opostos contra acórdão que, declarando a inconstitucionalidade de lei, nada diz quanto aos efeitos da decisão. O Min. Gilmar Mendes, Relator da ADI 2791, a despeito de não ser sido formulado pedido para a modulação dos efeitos, acolheu embargos declaratórios opostos com essa finalidade. O Ministro, considerando que:
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