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A expressão excepcional interesse social inova em relação à adotada pela Constituição Portuguesa, que prevê como um dos limites aos efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade o interesse público de excepcional relevo. Certamente, não foi por um acaso que o legislador brasileiro preferiu qualificar o interesse (a ser considerado na fixação dos efeitos) de social ao invés de público. Este poderia dar margem a uma interpretação que lhe atribuísse o significado de interesses exclusivos do Estado enquanto pessoa jurídica dotada de direitos e obrigações. O interesse social vai além dos interesses estatais imediatos, identificando-se com “o interesse que consulta à maioria da sociedade civil; o interesse que reflete o que esta sociedade entende por ‘bem comum’; o anseio de proteção à res publica; a tutela daqueles valores e bens mais elevados”196.
Quis-se, assim, deixar clara a idéia do interesse público como “interesse da sociedade ou da coletividade como um todo”197. Trata-se de proteger o interesse público enquanto finalidade da organização estatal e não enquanto meio para consecução desse fim, pois nem sempre os caminhos adotados pela Administração são os mais efetivos para o alcance do bem comum. Aliás, se se partisse da idéia de que o Estado está sempre com a razão, por buscar realizar a vontade do povo, não seria necessário o controle de constitucionalidade.
O interesse social é o interesse coletivo primário, enquanto o interesse da Administração é um dos interesses secundários dispersos e isolados no seio da sociedade. Nesse sentido a distinção feita por Renato Alessi, ao considerar a existência de um interesse público primário e de um interesse público secundário:
O interesse chamado público não é nada mais do que o interesse coletivo primário considerado como sujeito de tutela direta para a ação administrativa, enquanto que o interesse da Administração, enquanto entidade organizada, não representa senão um dos interesses secundários que existem no grupo social198.
Rui Medeiros entende que o interesse público de excepcional relevo tem um caráter residual em relação à segurança jurídica e à eqüidade, abrangendo todos os interesses constitucionalmente protegidos não subsumíveis nestas. Observa que, se o interesse público exclui, em princípio, os interesses privados, estes não deixam de constituir, todavia, interesse público, porquanto, diante da ordem constitucional portuguesa – democrática e social como a brasileira – “o próprio interesse consistente na salvaguarda dos direitos fundamentais dos particulares é também um interesse público e não meramente privado”199.
A Constituição Portuguesa prevê que, como justificativa para a restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, o interesse público de excepcional relevo deverá ser fundamentado. Esta foi a fórmula adotada pelo constituinte português a fim de amenizar a generalidade da expressão e dar legitimidade ao interesse público invocado, pois que este, segundo Jorge Miranda, constitui uma razão não estritamente jurídica, diferente das razões de segurança e eqüidade, esta de incidência mais subjetiva e aquela de incidência mais objetiva, mas ambas estritamente jurídicas200.
Essa atribuição ao interesse público de excepcional relevo de certo caráter político é criticada por Rui Medeiros, o qual alerta para o fato de que “a responsabilidade última pelo bem comum não pode ser transferida para o poder jurisdicional, pois para isso estão predestinados os poderes políticos”. Ou seja, a possibilidade de o Tribunal constitucional decidir com base em razões políticas implicaria de fato “num poder totalmente discricionário e absoluto a que a normatividade apenas daria pretexto”201.
Rui Medeiros defende a idéia de que o interesse público de excepcional relevo deverá ser subtraído daquilo que a própria Constituição representa, dando-se um sentido amplo ao princípio da constitucionalidade e preservando-se, assim, a primazia da Constituição através de uma ponderação entre os interesses conflitantes. Quanto à necessidade de fundamentação, acrescenta-se, na realidade, a exigência de que, neste caso, ela seja especial ou reforçada, pois a regra é que todas as decisões sejam fundamentadas. Assim, o Tribunal Constitucional “deve indicar claramente o interesse constitucional que se pretende salvaguardar com a restrição de efeitos e os motivos concretos que impõem tal medida”202.
A referência de Jorge Miranda ao interesse público de excepcional relevo não está, todavia, desvinculada da idéia do constitucionalismo. O fato de o interesse público não ser considerado uma razão puramente jurídica não significa que será tratado tão-somente no âmbito da política estatal e de forma arbitrária. Antes disso, vem para dar efetividade à Constituição, na medida em que permite uma interpretação dos princípios constitucionais com base na realidade social, ou seja, sem deixar à margem de qualquer consideração os anseios da sociedade. Até mesmo porque estes se modificam com o passar do tempo.
A expressão excepcional interesse social, tentativa de aprimoramento da expressão espanhola – interesse público de excepcional relevo, está também impregnada na idéia de que a realidade social e as conseqüências da decisão declaratória de inconstitucionalidade devem ser consideradas na fixação dos efeitos desta. Se se quisesse atribuir ao interesse social um significado puramente jurídico-positivo, a expressão não seria interesse, mas sim direito social simplesmente. E, mesmo nesta hipótese, numa interpretação contemporânea, com enfoque na materialidade da justiça, haveria subsídios para lhe atribuir aquela abrangência. A decisão que limita os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com fundamento em excepcional interesse social não precisa indicar necessariamente um direito expresso na Constituição, até mesmo porque, conforme dispõe o § 2º do art. 5º, não ficam excluídos outros direitos e garantias “decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República do Brasil seja parte”.
O exame da compatibilidade vertical entre um ato normativo e a Constituição pressupõe que, antes disso, identifique-se o parâmetro de confronto, ou seja, o significado da norma constitucional indicada como paradigma a partir da análise de dois elementos, um conceitual e outro temporal”203.
O primeiro, considerada a improficuidade de uma Constituição puramente formal, consiste na determinação do espírito da Lei Fundamental, exigindo-se para tanto uma análise sistemática das normas explícita ou implicitamente por ela contempladas. Aqui, “o parâmetro de constitucionalidade é mais vasto do que as normas e princípios constantes das leis constitucionais escritas, devendo alargar-se, pelo menos, aos princípios reclamados pelo ‘espírito’ ou pelos ‘valores’ que informam a ordem constitucional global”204. A noção de bloco de constitucionalidade desenvolvida pelos tratadistas constitucionais prende-se mais ao conteúdo material da Constituição do que ao seu aspecto formal205. Essa idéia resta clara no sistema constitucional brasileiro, quando o § 1° do art. 102 da Constituição prevê a competência do Supremo Tribunal Federal para apreciar a argüição de descumprimento de preceito fundamental dela decorrente206. Aliás, a idéia de uma Constituição material está esculpida também no § 3º do art. 5º da Constituição (acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/2004), atribuindo-se hierarquia constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que sejam aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros.
O segundo elemento a ser considerado na fixação do padrão de cotejo entre o ato estatal e a Constituição diz respeito à contemporaneidade de ambos. Daí se conclui, por exemplo, que o ato normativo ordinário anterior contrário à nova ordem constitucional considerar-se-á revogado, não se tratando, pois, de uma questão de constitucionalidade207. É com base, também, nesse elemento temporal, que se poderá defender a possibilidade de declaração de uma lei “ainda constitucional” em face de modificações fáticas ou jurídicas no seio da sociedade208.
Impossível seria admitir que a Constituição de um Estado social democrático de direito defendesse valores anti-sociais, tendo em vista que o seu fundamento está justamente na promoção do bem de todos. Conforme assentado por Bonavides,
Não se pode, pois, conceber a Constituição Jurídica como uma mera folha de papel – Constituição Jurídica, embora se reconheça, conforme crítica de Lassalle210, que ela deva, sim, corresponder aos fatores reais de poder – Constituição Real211. Segundo Hesse, nem sempre estes se verificarão em desfavor daquela. Há um necessário condicionamento recípro.co entre ambos. O que não se poderá permitir, todavia, é a modificação da Constituição a cada alteração provocada pelas forças que atuam na sociedade. É possível preservar-lhe a força normativa, sem se esquecer da realidade fática, por meio da interpretação constitucional212. Assim, o mínimo de eficácia que a Constituição possuir sobre a realidade deverá ser convertido no máximo possível, com o reconhecimento das forças sociais politicamente atuantes “capazes de modificar, com rapidez e freqüência, o sentido das normas constitucio.nais, maleáveis e adaptativas na medida em que possam corresponder, de maneira satisfatória, às prementes e fundamentais exigências do meio social”213.
O controle da constitucionalidade das leis é instrumento que garante não apenas a exclusão da norma incompatível diretamente com a Constituição como também daquelas normas que impedem a efetividade dos direitos nela enunciados, porquanto a realização do programa constitucional é responsabilidade de todos os Poderes do Estado. A propósito, Canotilho observa que o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais
é um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais) 214.
A ordem social democrática impõe, assim, a atuação do Estado como garantidor dos direitos fundamentais na medida em que situações e poderes extra-estatais, “como os raciais, eclesiásticos e, especialmente, os poderes econômicos”215 também atingem as liberdades individuais. A questão não está, pois, apenas em defender o cidadão em face do Estado, mas em defendê-lo, também, frente aos demais indivíduos. Nesse contexto, surgem as normas programáticas como marca das constituições contemporâneas, de que é exemplo a brasileira, comprometidas “com as conquistas liberais e com um plano de evolução política de conteúdo social”216. Embora os direitos individuais e sociais tenham sido conquistados em momentos diferentes, não há uma relação de exclusão entre eles; muito antes pelo contrário, o que se vê é uma evolução dos direitos de liberdade. Os direitos sociais somam-se aos direitos individuais, que, para serem fruídos dependem de uma iniciativa do indivíduo. Estes exigem uma omissão e aqueles, uma ação estatal, no sentido de suprir as deficiências da ordem social existente. Nas palavras de Raul Machado Horta, “os direitos individuais foram instrumentos contra o Poder, aprofundando o dissídio entre a liberdade e a autoridade do Estado. Os direitos sociais superam o confronto entre liberdade e o poder. Converteram-se em instrumentos do Poder, para que este possa realizar direitos coletivos”217.
Vê-se, pois, que a expressão excepcional interesse social se coaduna com a Nova Hermenêutica constitucional, fundada em critérios que não aqueles clássicos de Savigny – gramatical, lógico, histórico, sistemático e teleológico. A abertura e a generalidade das normas constitucionais e, especialmente, dos direitos fundamentais, torna imperativa a utilização de métodos distintos daqueles adotados na hermenêutica das leis218.
O intérprete constitucional exerce um papel de concretização da Constituição, cujo conteúdo material, para Hesse, será determinado sempre em face de um problema concreto219. Para as teorias concretizadoras, aquele que interpreta a norma constitucional estabelecerá uma compreensão prévia desta sem se desvincular do problema cuja solução se busca. Essa análise, no entanto, peca ao desconsiderar a Constituição como um sistema hierárquico axiológico, tendo em vista o caráter empírico da metodologia adotada e o isolamento da norma constitucional interpretada para o caso220.
A solução de Klaus Stern, para quem os métodos de concretização não devem excluir os métodos tradicionais de interpretação, parece estar mais apta a dar efetividade aos direitos fundamentais. Aqui, a unidade do sistema constitucional funciona como excludente de contradições, na medida em que as normas isoladamente previstas na Constituição subordinam-se aos princípios que, como um todo, dela decorrem221.
O espírito da Constituição concretiza-se na medida em que as suas normas possuem legitimidade, representando os interesses da sociedade. Nesse sentir, observa Bonavides que,
A relevância do interesse social será, portanto, analisada por meio da ponderação entre o princípio constitucional que embasa o aclame social e outro também previsto ou decorrente dos direitos expressos na Constituição, ambos em face dos princípios que definem a ordem constitucional global.
Sabe-se que a Constituição não se presta a elencar de maneira exaustiva todos os direitos dos cidadãos, mesmo por que, tal seria impossível. Justamente por isso é que normas ordinárias pautadas em princípios constitucionais exercem o papel de concretização da Lei Fundamental e, ademais, quando imbuídas na promoção do bem-estar social, adquirem especial relevância.
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