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Definidas, pois, as razões de segurança jurídica e excepcional interesse social não apenas como princípios constitucionais, mas como próprio fundamento da Constituição, na medida em que se traduzem em estabilidade das garantias constitucionais e justiça material, respectivamente, cabe analisar de que forma estes princípios serão conjugados e ponderados entre si e em relação aos demais princípios constitucionais, tendo-se por base a estrutura e as características dessa espécie de norma.
Advirta-se, inicialmente, que não se está a fazer uma ponderação do princípio da supremacia da Constituição de um lado, e do relevante interesse social ou da segurança jurídica de outro. A superioridade das normas constitucionais não se discute. A dosagem dos efeitos retroativos da decisão deve ser feita quando se estiver diante de um conflito entre a norma constitucional que enseja a declaração de inconstitucionalidade e a norma constitu.cional que justifica a preservação dos efeitos produzidos pela lei inconstitucional223.
Na teoria dos princípios, desenvolvida com destaque por Ronald Dworkin e Robert Alexy, os princípios possuem carga normativa, embora com maior grau de abstração do que as regras. A aplicação destas aos casos fáceis, nos quais a simples subsunção é suficiente para o reconhecimento das conseqüências jurídicas previstas, é tranqüila, pois, ou as regras incidem ou elas não incidem sobre os fatos. Todavia, nos casos difíceis, em que as peculiaridades da questão não permitem a pura aplicação da regra, faz-se necessário sopesar o princípio que a justifica e o princípio que põe em dúvida a sua justiça no caso concreto224. A diferença lógica entre regras e princípios está, para Dworkin, no fato de que a colisão destes é resolvida com base no critério da dimensão do peso e o conflito entre aquelas no da aplicabilidade do tudo-ou-nada225.
Adota-se, no Brasil, o princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição, segundo o qual todas as normas constitucionais estão num mesmo nível de hierarquia. Embora se reconheça a existência de princípios decorrentes da Constituição, não se trata de algo que lhe seja superior, capaz de determinar a inconstitucionalidade de norma prevista pelo poder constituinte originário226. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica nesse sentido, pois a competência que lhe foi atribuída é de guarda da Constituição e não de fiscalização do poder constituinte originário com base em princípios de direito supra positivo227.
De forma abstrata, os princípios constitucionais são equivalentes e quando “aparentemente contraditórios alcançam interpretação harmonizada em face da atuação do intérprete que abandona a pretensão de conferir a cada um deles interpretação absoluta ou isolada”228. Superada a idéia de que nenhum dos princípios constitucionais pode ter precedência de forma absoluta, Alexy defende uma ordem branda, quando inserida uma carga de argumentação, por exemplo, em favor dos direitos individuais contra os bens coletivos229. Essa preferência prima facie não equipara, todavia, os princípios às regras, apenas indica um caminho em caso de dúvida. A própria jurisprudência acaba definindo em que casos um princípio deverá prevalecer sobre outro, o que influencia a análise abstrata das normas constitucionais230.
Os princípios, segundo Alexy, são mandados de otimização, na medida em que determinam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Esse, aliás, o ponto decisivo de distinção entre regras e princípios, os quais podem ser cumpridos em maior ou menor grau, conforme as possibilidades reais e jurídicas, sendo estas determinadas pelos princípios e regras opostos.231
A possibilidade de flexibilização dos princípios não significa, todavia, que o juiz, ao julgar um caso difícil, possa fazê-lo com discricionariedade, porquanto os princípios também vinculam. São razões para um juízo concreto de dever ser, que, assim, como as regras poderão consistir num mandado, permissão ou proibição232.
Segundo Alexy, os princípios contêm caráter prima facie, e as regras constituem mandados definitivos. Estas não têm um espaço de graduação, mas aqueles, sim, na medida em que serão cumpridos em menor ou maior grau em face dos princípios contrapostos e das possibilidades jurídicas. O autor reconhece, todavia, que a introdução de uma cláusula de exceção à regra importa na atribuição de caráter prima facie também a estas; porém, não no mesmo sentido do caráter prima facie dos princípios, porquanto uma regra não cede, no caso concreto, a um princípio de peso maior do que aquele que a fundamenta. Uma regra válida somente cederá àquelas exceções previstas no ordenamento jurídico. O grau de cumprimento da regra geral, nestes casos, relaciona-se com a quantidade de regras especiais que a derrogam.233.
Alexy salienta a importância dos chamados princípios formais, os quais estabelecem que as regras, quando impostas por uma autoridade legitimada, devem ser seguidas da forma como previstas, não podendo ser afastadas senão com fundamento em uma prática transmitida234. Assim, um sistema jurídico que não reconheça a existência de princípios formais é um sistema desprovido de segurança, pois nenhuma situação concreta poderá ser resolvida de maneira direta e definitiva. As regras de exceção limitam as possibilidades de aplicação das regras gerais em caráter diverso do que o dos princípios contrapostos e as possibilidades jurídicas (as próprias regras) quando determinantes do grau de cumprimento dos princípios.
A teoria dos princípios está umbilicalmente ligada ao preceito da proporcionalidade235, que estabelece, por meio da aplicação conjunta dos preceitos parciais da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, qual princípio deverá prevalecer no caso concreto. Assim, a decisão será proporcional quando o meio empregado for, ao mesmo tempo, adequado, ou seja, eficaz, para o alcance do resultado pretendido; necessário, no sentido de que não há outro meio mais ameno ou menos interventor; e proporcional em sentido estrito, posto que a maior ou menor satisfação do princípio oposto corresponde ao grau de importância do princípio que se preserva com a medida236.
O Supremo Tribunal Federal tem adotado expressamente como fundamento de suas decisões a necessidade de se fazer uma ponderação dos valores constitucionais contrapostos. No julgamento da Reclamação nº 2.040-DF, discutiu-se sobre a constitucionalidade de decisão que autorizara a coleta da placenta da extraditanda Glória Trevi, após o parto, para fins de instruir inquérito policial instaurado contra policiais federais responsáveis pela sua custódia acusados de terem-na estuprado e engravidado. Diante do caso,
Fazendo uma ponderação dos valores constitucionais contrapostos, quais sejam, o direito à liberdade e à vida privada da extraditanda, e o direito à honra e à imagem dos servidores e da Polícia Federal como instituição – atingidos pela declaração de a extraditanda haver sido vítima de estupro carcerário, divulgada pelos meios de comunicação –, o Tribunal afirmou a prevalência do esclarecimento da verdade quanto à participação dos policiais federais na alegada violência sexual, levando em conta, ainda, que o exame de DNA acontecerá sem invasão da integridade física da extraditanda ou de seu filho237.
Conforme anota Alexy, do preceito da proporcionalidade em sentido estrito decorre que os princípios são mandados de otimização com relação às possibilidades jurídicas e que, os preceitos da adequação e da necessidade, por sua vez, denotam o caráter dos princípios como mandados de otimização com relação às possibilidades fáticas.
O preceito da proporcionalidade representa, segundo o Tribunal Constitucional alemão, a própria essência dos direitos fundamentais238. Segue-se aqui o sentido da proibição do excesso, o qual impõe que as intervenções estatais não onerem o cidadão “mais intensamente do que o imprescindível para a proteção do interesse público”239.
Uma Constituição democrática e que vise ao estabelecimento de direitos fundamentais deverá consistir numa ordenação-quadro, no sentido de colocar o legislador dentro de um quadro, proibindo-lhe, ordenando-o ou nem lhe proibindo ou nem lhe ordenando algo. Há de haver, portanto, a previsão de direitos fundamentais sem, todavia, expandi-los a ponto de jusfundamentalizar todo o direito, pois se não houver abertura para a sua regulamentação, passar-se-á de um Estado legislativo para um Estado jurisdicional do tribunal constitucional. Necessário, assim, um equilíbrio perfeito entre a ordem fundamental e a ordenação-quadro por meio da dogmática do espaço de ação240.
O espaço de ação consiste, pois, naquilo que a Constituição nem ordena nem proíbe, ou seja, naquilo que deixa livre. Alexy classifica os espaços de ação em: estruturais, definidos pela inexistência de proibições ou mandados definitivos, podendo, assim, o legislador colocar objetivos, escolher meios e ponderar princípios quando aquele que fundamentar a intervenção tiver idêntico peso daquele que fundamenta o direito que sofre a intervenção; e epistêmicos, definidos pelo limite da capacidade de identificação daquilo que a Constituição exige, proíbe ou deixa livre – trata-se aqui, de uma incerteza cuja origem está em premissas empíricas ou normativas241.
Utilizando-se o preceito da proporcionalidade em sentido estrito, dificilmente se poderá admitir que interesses jurídicos não tutelados constitucionalmente possam limitar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, porquanto o seu sacrifício dificilmente será excessivo em face do interesse na preservação da normatividade da norma constitucional violada. A restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade pauta-se exclusivamente em interesses tutelados pela Constituição e isso se afere a partir da própria ordem constitucional, ou seja, “as conseqüências da inconstitucionalidade de uma lei devem ser determinadas no quadro da Constituição no seu todo e na sua unidade”242.
Por mais abrangentes que sejam as razões de segurança jurídica e excepcional interesse social, no sentido de que podem ser invocadas em quase todas as situações de violação constitucional, deve-se ter presente que o preceito da proporcionalidade não tolera que a simples invocação de um interesse constitucionalmente protegido afaste os efeitos típicos da declaração de inconstitucionalidade. Para que a restrição desses efeitos se coadune com o espírito da Constituição, será preciso que da ponderação entre princípios constitucionais, estando num dos lados da balança a segurança jurídica ou o excepcional interesse social, chegue-se à conclusão de que haveria um sacrifício excessivo destes em relação ao princípio contraposto na hipótese de se adotar a simples fixação de efeitos retroativos e repristinatórios243.
O preceito da proporcionalidade poderá, em contrapartida, impedir a limitação dos efeitos da decisão que declara inconstitucional a lei. Isso ocorrerá, pois, sempre que se constatar, no caso concreto, que o prejuízo à segurança jurídica ou ao excepcional interesse social não é excessivo. Rui Medeiros trata de três exemplos levantados pela doutrina na tentativa desta definir casos em que a limitação da eficácia retroativa e repristinatória violaria a Constituição.
O primeiro deles diz respeito à norma inconstitucional violadora de direitos insuscetíveis de suspensão em estado de sítio, pois que, em princípio, a gravidade do vício seria evidente. Porém, em situações-limite, em face das circunstâncias concretas do caso, a salvaguarda de outros direitos igualmente fundamentais poderia impor a restrição dos efeitos244.
O segundo diz respeito à fiscalização abstrata sucessiva da inconstitucionalidade superveniente de normas ordinárias anteriores à Constituição, pois neste caso a conseqüência seria a caducidade da norma reportada à data da entrada em vigor da Lei Fundamental. Nenhum motivo há neste caso, todavia, para se desconsiderar a possibilidade de restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Apenas há de se considerar que a retroatividade da declaração estaria limitada à data da entrada em vigor da norma constitucional (originária ou derivada) que a revogara245.
O terceiro consiste na tese de que a limitação dos efeitos não se justifica nos casos em que a inconstitucionalidade era flagrante desde o princípio e logo no início foi publicamente suscitada, visto que a discussão em torno da lei retiraria a boa-fé do legislador. A crítica, neste caso, é de que não se poderia exigir do homem médio sem conhecimentos jurídicos o mesmo grau de diligência que se espera dos membros do Governo. Ou seja, a discussão poderia passar despercebida da maioria dos cidadãos, os quais não teriam razão para desconfiar da validade da lei246.
Por fim, no que tange à aplicação do preceito da proporcionalidade na fixação de efeitos pro futuro, impera que se rejeite o critério formal do momento puramente casual da publicação da declaração de inconstitucionalidade247. Esta hipótese de fixação dos efeitos também, exige, portanto, um juízo de ponderação, na medida em que, a aplicação temporária da lei inconstitucional se justifique diante de um vácuo legislativo, cujas conseqüências estariam ainda mais afastadas da vontade da Constituição.
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