3.7 O apelo ao legislador

Uma das hipóteses de aplicação da técnica do apelo ao legislador é a da lei que “ainda” não se tornou inconstitucional. O Tribunal Constitucional, ao reconhecer essa situação “ainda constitucional”, conclama o legislador para que proceda à alteração da norma antes que ela se torne definitivamente contrária à Constituição. A utilização dessa variante poderá ocorrer em virtude de mudanças nas relações fáticas ou jurídicas. O apelo ao legislador poderá ser feito, também, em face de inadimplemento de dever constitucional de legislar ou por “falta de evidência” da ofensa constitucional120.

A mudança nas relações fáticas ou jurídicas é, sem dúvida, a categoria mais importante na utilização do apelo ao legislador. Em decisão de 1963, o Tribunal Constitucional deixou de declarar a inconstitucionalidade da Lei que disciplinava a divisão dos distritos federais, embora entendesse que, “em virtude da significativa alteração na estrutura demográfica das diferentes unidades federadas, a divisão dos distritos eleitorais, realizada em 1949 e preservada nas sucessivas leis eleitorais, não mais atendia às exigências demandadas do princípio de igualdade eleitoral”. A justificativa estava no fato de que à época da promulgação da Lei, 1961, a situação não tinha sido constatada ainda. Esse foi um típico caso de processo de inconstitucionalização em virtude de mudanças nas relações fáticas121.

Outro exemplo, agora com base em alterações fáticas e jurídicas, é o caso das pensões previdenciárias por morte do cônjuge do sexo feminino. A Lei de Seguridade previa que o cônjuge do sexo masculino somente faria jus à pensão se os rendimentos da segurada fossem indispensáveis para o sustento da família, sendo que no caso do cônjuge do sexo feminino, a dependência econômica era presumida para fins de concessão do benefício. A situação, no entanto, se modificou, pois a mulher passara a ocupar mais espaço no mercado de trabalho. A justificativa que se utilizava para tratar os cônjuges de maneira desigual começou a desaparecer e, ao mesmo tempo, passou-se a considerar uma possível ofensa ao princípio da igualdade122..

A gradual ocupação das mulheres de parte significativa do mercado de trabalho deu ensejo a caso semelhante no Brasil, tendo o Supremo Tribunal Federal considerado, inclusive, o precedente do Tribunal Constitucional alemão. Discutiu-se no Recurso Extraordinário n. 204.193-9/RS a possibilidade de inclusão do marido como dependente da esposa segurada a fim de que pudesse receber pensão, tendo decidido a Suprema Corte pela impossibilidade de extensão do benefício, que não prescindia de lei específica para a sua concessão. Ficou registrado no voto do Relator, Ministro Carlos Velloso, que se tratava de lei ainda constitucional, sendo

necessário reconhecer, em termos sociológicos, que o marido sempre foi considerado o provedor da família. O trabalho da mulher, de regra, é executado como auxílio no sustento da família. De regra, portanto, o homem não depende, economicamente, da mulher; o contrário é o que ocorre, de regra. É claro que essa situação, modernamente, vem se alterando. Mas ela não se alterou, ainda, no sentido de tornar-se a regra. Isto ocorre, aliás, praticamente no mundo inteiro. Na Alemanha, revela-nos Gilmar Ferreira Mendes, o Tribunal Constitucional costuma aplicar, no controle de constitucionalidade, a técnica do apelo ao legislador: “não raro reconhece a Corte que a lei ou a situação jurídica não se tornou “ainda” inconstitucional e exorta o legislador a que proceda — às vezes dentro de determinado prazo — à correção ou à adequação dessa situação ainda constitucional. (“O Apelo ao Legislador...”, Rev. dos Tribs., Cadernos de Dir. Const. e Ciência Política, 1/91)123.

O inadimplemento de dever de legislar também pode dar ensejo à variante do apelo ao legislador. A hipótese restringe-se àqueles casos em que não tenha transcorrido um prazo razoável para que o legislador providenciasse a edição da norma exigida expressamente pela Constituição ou decorrente do chamado dever de proteção, “que obriga o Estado a atuar na defesa e proteção de certos valores, como a vida, a integridade física, a honra, sobretudo em face de agressões praticadas por terceiros”124. Esse foi o caso, por exemplo, da decisão que considerou como prazo razoável o de uma legislatura para que o legislador garantisse, nos termos do art. 6º, V, da Lei Fundamental, a igualdade de tratamento para os filhos legítimos e os havidos fora do casamento. Tendo estabelecido o Tribunal, ainda, que no caso de mora do legislador, os Tribunais e juízes poderiam aplicar diretamente o dispositivo constitucional pendente de regulamentação125.

A terceira hipótese de utilização do apelo ao legislador, ou seja, a falta de evidência da ofensa constitucional, muito se parece com a das mudanças nas relações fáticas e jurídicas, porquanto o Tribunal abstém-se de declarar a inconstitucionalidade por não ser esta evidente ao tempo da elaboração da lei. Verifica-se, destarte, uma subjetivação da ofensa constitucional, a partir do momento em que o Tribunal passa a considerar a “consciência constitucional” do legislador ao editar a norma. Assim, a decisão da Corte ao alertar o legislador para os indicativos de inconstitucionalidade, torna patente o vício, que requer providências a fim de que seja sanado126.

Embora a doutrina faça críticas à variante do apelo ao legislador, tendo em vista a ausência de base legal para a sua utilização, bem como a falta de competência do Tribunal Constitucional para fazer prognósticos do processo de inconstitucionalização de uma lei, a verdade é que se trata de uma simples sentença de rejeição da inconstitucionalidade da lei impugnada127.

O apelo ao legislador consta, normalmente, dos fundamentos da decisão. O Tribunal Constitucional vem utilizando-se da fórmula, entretanto, com referência, na parte dispositiva, às razões de decidir, a fim de advertir o legislador de maneira mais enfática. A constatação pelo Tribunal do processo de inconstitucionalização, todavia, não faz coisa julgada e tampouco tem força de lei. A referência aos fundamentos da decisão tem por objetivo deixar a matéria em aberto, para que a questão possa ser suscitada novamente após o decurso de determinado prazo128.