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Adotou-se, como visto, no Brasil, a tese da nulidade da lei inconstitucional, tendo a decisão declaratória da inconstitucionalidade efeitos retroativos, pois que se trata de nulidade absoluta, a qual atinge a norma desde o início. Embora a doutrina e a jurisprudência tenham encontrado alguma dificuldade para justificar a adoção desta teoria com base no ordenamento jurídico brasileiro – tendo em vista que não havia nenhuma norma que atribuísse força de lei (como no direito alemão) ou efeito vinculante (como no direito norte-americano) à decisão declaratória de inconstitucionalidade129 –, o fundamento estava no fato de que nulidade decorria da própria supremacia da Constituição. Era, aliás, o que já havia sido defendido por Marshall no famoso caso Marbury vs. Madison, e por Rui Barbosa, sob influência do direito norte-americano, ao se introduzir no Brasil o sistema difuso de controle de constitucionalidade.
A complexidade do controle de constitucionalidade das leis e as conseqüências das decisões declaratórias de inconstitucionalidade sobre a estabilidade das relações jurídicas levaram a uma flexibilização da tese da nulidade tanto nos sistemas de controle difuso como nos de controle abstrato. O direito austríaco já adotava como regra a anulabilidade da lei viciada por ofensa à Constituição, tendo em vista o princípio da segurança jurídica e a presunção de validade da lei. O direito norte-americano, onde mais se defendeu a eficácia ex tunc, inaugurou a possibilidade de declaração de efeitos ex nunc no julgamento do caso Linkletter vs. Walker (1965), em que a Suprema Corte, considerando as repercussões da mudança de entendimento que ora se firmava, afirmou que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade eram um assunto de política judiciária, a ser analisado caso a caso130. E o direito alemão, que também adota a eficácia retroativa como regra, criou, desde a instauração do Tribunal Constitucional Federal, em 1951, uma série de variantes da decisão declaratória de nulidade: a declaração parcial de nulidade sem redução de texto; a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade; a interpretação conforme a Constituição; e o apelo ao legislador.
A insuficiência da tese da nulidade fez, também, com que os sistemas espanhol e italiano desenvolvessem fórmulas de restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. No direito espanhol, embora não haja previsão legal, a Corte Constitucional, passou a adotar, desde 1989, por influência das técnicas do direito alemão, a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade131. No direito italiano, por sua vez, adotaram-se as técnicas da inconstitucionalidade superveniente em sentido amplo ou diferida (com efeitos pro futuro) e da constitucionalidade provisória (que guarda semelhança com a variante alemã do apelo ao legislador)132.
No direito português, previu-se expressamente a possibilidade de restrição dos efeitos retroativos da decisão declaratória de inconstitucionalidade, nos termos do art. 282 (4), da Constituição Portuguesa , o qual dispõe que “quando a segurança jurídica, razões de eqüidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade mais restrito do que o previsto nos n. 1 e 2”133.
Esse dispositivo é bastante semelhante à fórmula adotada no Brasil com a edição da Lei nº 9.868/99 , que regula a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, e da Lei nº 9.882/99 , que dispõe sobre a argüição de descumprimento de preceito fundamental, nos termos do art. 102, § 1º, da Constituição Federal. Os artigos 27 e 11 das referidas leis, respectivamente, estabelecem que ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo,
Pode-se dizer que, mesmo antes da previsão expressa das citadas leis, já se verificavam alguns casos de simples declaração de inconstitucionalidade, sem pronúncia de nulidade, a exemplo do que fazia o Tribunal Constitucional alemão nos casos de omissão legislativa, pois, conforme formulado por aquela Corte, não se poderia declarar a nulidade de uma lacuna. A primeira vez que se discutiu sobre a constitucionalidade da omissão do dever de legislar, aqui no Brasil, foi em 1989, no julgamento do Mandado de Injunção nº 107 (Questão de Ordem)134. Após, portanto, a Constituição Federal de 1988 , que previu como instrumentos desse controle o mandado de injunção (art. 5º, LXXI) e a ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º). Restou esclarecido naquela decisão, aliás, que tanto a omissão total do legislador como a omissão parcial, em que a norma constitucional é regulada de maneira imperfeita, seriam passíveis de controle (estando dentro desta segunda hipótese aqueles casos de exclusão de benefício com ofensa ao princípio da isonomia).
Outra hipótese de declaração de inconstitucionalidade em que não se verificava a cassação de um ato contrário à Constituição é a da representação interventiva, nos moldes em que fora prevista desde a Constituição de 1946, cuja decisão do Tribunal deveria limitar-se a constatar eventual ofensa aos chamados princípios sensíveis. Essa forma de controle foi reiterada nas Constituições de 1967/69 e 1988, as quais a previram, ainda, como instrumento para a garantia da execução da lei federal. Conforme prevê o § 3º do art. 36 da Constituição vigente, caberá ao Presidente da República, mediante decreto, a suspensão do ato do Governo estadual.
As conseqüências da adoção da tese da nulidade absoluta da lei inconstitucional foram objeto de reflexão em 1977 no julgamento do RE nº 79.343 , em que o Min. Leitão de Abreu manifestou-se dizendo que concordava com a tese da anulabilidade da lei inconstitucional, tendo em vista que o ato legislativo presume-se válido e produz efeitos antes da declaração de inconstitucionalidade. Observou, ademais, que esse era um entendimento que vinha a proteger a boa-fé daqueles que agiram conforme a lei ou ato normativo declarado posteriormente inconstitucional. Assim ficou registrado no seu voto:
Tenho que procede a tese, consagrada pela corrente discrepante, a que se refere o Corpus Juris Secundum, de que a lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação de inconstitucionalidade, podendo ter conseqüências que não é lícito ignorar. A tutela da boa-fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabeleceram relações entre o particular e o poder público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo135.
Acompanhando a evolução do direito comparado e a experiência constitucional brasileira, a Comissão elaboradora do Projeto originário da Lei nº 9.868/99 ponderou que, ao lado da ortodoxa declaração de nulidade, dever-se-ia reconhecer a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Tal possibilidade, entretanto, ficaria adstrita a casos excepcionais, estabelecendo-se, assim, requisitos de ordem formal e material. Este diz respeito às razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social e aquele consiste na necessidade de um quorum qualificado, maioria de 2/3 (dois terços) dos membros do Tribunal, para a limitação dos efeitos.
Pode-se verificar, ainda, outras três hipóteses limitativas136 à manipulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no Brasil. A primeira a ser acrescida aos limites constantes nas Leis nº 9.868/99 e 9.882/99 é a coisa julgada, que não deixa de ser, todavia, uma expressão do próprio princípio da segurança jurídica. Aliás, é em nome da estabilidade e da organização da Justiça que não se pode considerar automaticamente invalidada a coisa julgada ao se declarar, em sede de controle abstrato, a inconstitucionalidade da norma que lhe serviu de fundamento. Assim, há muito se entende que “a nulidade da decisão judicial transitada em julgado só pode ser declarada por via de ação rescisória”137. Lembre-se, aliás, que a inatingibilidade da coisa julgada, com exceção dos processos em matéria criminal, é prevista na Lei do Tribunal Constitucional alemão (art. 79, (1)).
A segunda hipótese limitativa a ser acrescida são os casos em que a norma penal declarada inconstitucional era mais branda do que a lei que vem a ser repristinada com a declaração de inconstitucionalidade, em atenção ao princípio da irretroatividade da lei penal menos benéfica, consagrado no art. 5º, XL, da Constituição Federal138.
A terceira, por fim, diz respeito aos institutos da prescrição e da decadência. Estes, da mesma forma que a coisa julgada, também se relacionam com o princípio da segurança jurídica, constituindo as chamadas situações juridicamente consolidadas. Sábias as considerações de Canotilho, quando se refere a tais situações:
Se as questões de facto ou de direito regulados pela norma julgada inconstitucional se encontram definitivamente encerradas porque sobre elas incidiu caso julgado judicial, porque se perdeu um direito por prescrição ou caducidade, porque o acto se tornou inimpugnável, porque a relação se extinguiu com o cumprimento da obrigação, então a declaração de inconstitucionalidade, com a consequente nulidade ipso jure, não perturba, através da sua eficácia retroactiva, esta vasta gama de situações ou relações consolidadas. Pode dizer-se que a norma viciada de inconstitucionalidade não era já materialmente reguladora de tais situações, sendo irrelevantes a sua subseqüente declaração de inconstitucionalidade 139.
Esse é o caso, por exemplo, da prescrição do direito de pleitear a restituição do indébito tributário, pois a declaração de inconstitucionalidade do tributo não enseja a reabertura do prazo para se ingressar com a ação de repetição, que visa a obter a restituição ou compensação do que foi pago indevidamente. Pacífico na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – competente para a análise do termo inicial da contagem da prescrição para o ajuizamento das ações de repetição de indébito140 – que a declaração de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, seja em controle difuso ou concentrado, em nada influencia o termo inicial da prescrição141.
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